Visitar o passado
para decidi-lo morto
Declarar independência e hastear bandeiras
fincá-las na poeira dos cantos da casa
Quem testa a própria resistência
o faz por cura ou por vaidade?
Quem declara o que é dever e o que é culpa
além de uma frágil cristandade?
Seja com a postura heroica ou dos covardes
não se vence esse combate montado a cavalo
É ilusão o peito aberto, arreganhado?
Nenhuma oração afasta o tempo
nenhuma armadura afasta o ataque
Visitar o passado é desdobrar-se como um fungo
ser o visitante, o mausoléu e o cadáver
Quando próximos apodrecemos juntos
caem os cabelos, cedem as pálpebras
temos os dentes roubados
restam as aranhas a recolher os corpos
embrulhá-los em suas teias
construídas com a textura lúdica de um sonho infantil
Aranhas são como mães a embalar bebês
mesmo enquanto o veneno dilui os órgãos
e bebem do tutano de suas personalidades
elas cantam suas canções de ninar
Visitar o passado é violar uma passagem proibida
Descobrir-se perdido na floresta de torsos
Andar sonambúlico entre enforcados
Reencontrar pedaços de si, reencenar velhas falas
Esse aqui, tão valioso, não encaixa mais
O passado é um museu de tudo aquilo que abrimos mão
roubos e desistências em pedestais de vidro
As placas explicam a dor em palavras rebuscadas
Tiramos fotos do que não entendemos
e nunca entendemos
Ninguém diz isso na terapia
As portas, elas não se fecham
Sempre haverá uma fresta por onde ver
o vazio abismal do céu escuro-luminoso
E por essa fresta espiarão olhos famintos
Esbugalhados, vidrados, sedados, dormindo
Os dedos ameaçadores são apenas um detalhe
a dar mais impacto nos pôsteres dos filmes do terror
São os olhos a pior parte, clichês que matam
Olhos escuros como um buraco negro
Sua força sentida a existências de distância
Um convite soprado pelas dobras do tempo
que nos engole por nossa própria vontade
Talvez seja essa a lição
Enxergar a armadilha não significa evitá-la
O pé se desmancha entre dentes de ferro
A gravidade puxa para baixo mesmo quem não acredita nela
Sem armadura somos mais leves para correr
Mas criar casca é melhor do que ser casulo
Um peito aberto sangra mais longe
O coração não para no lugar sem a jaula das costelas
Ninguém sai dessa jornada indiferente
pra nem toda dor existe cura
cabem às cascas aguentar a pressão das feridas
O risco de descer demais no abismo do tempo
É ultrapassar o limite da corda
O que largar dessa vez para voltar à superfície?
Já sinto os pés atolarem
Do que será feita toda essa lama escura?
O passado é uma visita perigosa
Mesmo sem convite, está sempre a espiar
a comandar suas tecelãs
Não importa o quanto estejamos longe
Mas sempre haverá um ponto mais distante na beira do mundo para se testar
E nós, como o próprio tempo, seguiremos em frente