Ele para, atento, à beira do precipício.
Para um segundo antes do fim, a tempo de ver a manada caindo.
Os animais desabam uns sobre os outros. Empurram uns aos outros, agridem uns aos outros, e uns com os outros vão se derramando. Despencam como membros a formar um animal maior, irracional, histriônico e indefinido. Barrigas rasgadas dos chifres, pés quebrados dos coices, olhos cegos do ódio vazio; vão caindo.
Mas ele para.
Não sabe dizer o que o levou a parar, mas para. Primeiro um pé, depois o outro. Tenta se firmar contra a terra, quebrar o fluxo que o empurra em direção à morte. Tenta gritar à manada que foi dali que eles vieram, muito tempo atrás, e que só há dor e tristeza no fundo do precipício. Grita até que a garganta inche e a voz desapareça, até que os chifres lhe doam na cabeça.
Mas o barulho é alto demais.
Se sente fraco. Sente vontade de fechar os olhos e se deixar levar, ter o corpo arrastado pelos outros animais que sequer o enxergam no caminho. Talvez fosse mais fácil, enfim, encerrar a luta e beijar o abismo que lhe chama se fingindo de salvação. Mas esse é um talvez que se recusa a aceitar.
Assim, passado o instante de fraqueza, ele para.
Com a força que lhe resta, se joga para o lado, aos encontrões. Acerta um ombro, aproveita uma nesga de espaço, limpa do rosto o suor e recomeça tudo outra vez. Manobra como pode e como não pode, sabendo que sua vida depende disso, e consegue escapar daquela histeria cega, lamacenta e caudal.
Ofegante, ele para.
As pernas tremem, o corpo dói, mas está vivo.
Ajoelhado, exaurido, um resto de si, se pergunta o que o fez resistir.
A percepção do abismo, talvez. Talvez o cheiro de sangue, de barro, de bosta. Talvez o inverso disso. O traço de ar puro que respira acima das cabeças, dos cornos retorcidos, lembrando que sim, existe outro caminho.
E por desejar esse caminho, ele para.
Fica de pé, se vira para trás. Sem voz, estufa o peito e se limita a olhá-los no fundo dos olhos. Pode ser que convença um deles, quem sabe dois, dez. Ou talvez ninguém. Se assim for, que eles caiam.
O importante é que ele para, desperto, à beira do abismo.
Para um segundo antes do fim, a tempo de ver a manada caindo.